Muniz Sodré

Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Muniz Sodré

Violência tem espírito

Caos só pode ser contido por plenitude democrática e por reeducação da vida, isto é, das mediações institucionais

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

  • 26

Há muito se fala de terra, com razão, como grande questão social brasileira. Depois, a racial. Agora a segurança pública subiu ao pódio, a gravidade tem sacudido a letargia oficial. Enxuga-se gelo. Mas também se verifica que paliativos pontuais aliviam a sensação de insegurança, em especial durante megaeventos como o Réveillon carioca, tranquilo este ano.

É imperativo, porém, associar anomia criminosa à violência estrutural, de proporções alarmantes, como condição da profunda desigualdade social, que exaspera as situações de carência e abre espaço para discursos populistas, cada vez mais corruptores da institucionalidade democrática.

Um ano após atos golpistas, ainda restam vestígios do vandalismo, como pedras portuguesas arrancadas do calçamento e grades que cercam o STF - Pedro Ladeira - 5.jan.24/Folhapress

Aos prováveis argumentos de que sempre foi assim e que, portanto, não haveria correlação entre estrutura e aumento de violência, convém lembrar que o populismo de direita carrega fatores intrínsecos de disrupção. Para efeitos eleitorais, faz do populismo penal-midiático panaceia contra a insegurança, enquanto na prática a incrementa por disseminação de armas, a título de liberalismo da autoproteção. Desde o desgoverno passado, a farra dos CACs é cúmplice do crime organizado.

Não só armas. A tradição marcial japonesa estatui: "conter o espírito de violência". É que, além de força em ato, violência implica estado de ânimo avesso à educação social, entendida por John Dewey como "a própria vida". A afecção destrutiva de corpos nasce na recusa de limites à potência, danosa a noções comuns como confiança e segurança. Violência não é força vital nem insanidade agressiva. É cultural, tem espírito e, se estimulada, cola como segunda pele em carrascos e vítimas.

Entre nós, a superestimulação coincide com a emergência do extremismo na década passada, junto à violência das redes e dos cultos que alimentam pulsões de ódio e de morte. Imagem exemplar: a vândala-golpista que, no 8/1, empunhava marreta e se ajoelhava para rezar. A rede de webcrentes é um deserto humano portátil.

Na palavra caos, sintetizam-se fatores: além da anomia e do brutalismo intrínseco da estrutura, implosão de valores imanentes aos vínculos humanos. Não é a ausência de disciplina cívica que desencadeia o caos, mas circunstâncias permissivas da fascistização social. Celebrar instituições implica abrir os olhos à sua ambiguidade de casa-grande, para tentar transformá-las desde dentro.

A segurança de mercado, dita "pública", não depende desse ou daquele ministro, e sim de uma ampla ação pactuada do Estado formal, que periga sucumbir ao paralelo se não retomar o domínio territorial. Mas o espírito de violência só é contido por plenitude democrática e por reeducação da vida, isto é, das mediações institucionais. Sem isso, resta ao povo comum ir levando. Ao governo, pilotar o caos.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

  • 26

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.

William Rachid

21.jan.2024 às 14h58

Não só a violência dos populistas de direita, mas os de esquerda também, quando não se assenhoram do dever de estabelecem um plano para diminuir a desigualdade social e ao mesmo tempo, no curto prazo, buscarem uma estratégia para melhorem as condições de convívio. Por exemplo, por que não"criarem" uma causa nacional que deveria ser a reforma da Educação no país, desde o básico até o Ensino Médio, visando a unir a todos nesse objetivo ? O governo pode fazer isso já.

BRAULIO S ALVES FERNAN

21.jan.2024 às 13h46

Ah, se os outros articulistas, os jornalistas e, principalmente, os editores da Folha lessem de fato Muniz Sodré (interpretando as cutucadas implícitas dadas ao próprio caráter espetaculoso e superficial do próprio jornal) e entendessem a grandeza de suas reflexões, não teríamos um jornalismo tão barato e superficial como este que se apresenta no dia-a-dia desse jornaleco